quarta-feira, 30 de março de 2011

Um pouco mais sobre Cultura - intervenção humana na realidade

Continuando, ampliando e aprofundando a discussão sobre cultura, resolvi publicar trechos de um texto que acabo de ler, o qual estabele a relação entre o ser humano e a produção cultural.
Ele é trecho do livro A Escola e o Conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos, de Mário Sergio Cortella.

Cultura: o mundo humano
*em parágrafos anteriores a este no livro, Cortella defende a tese de que para se adaptar ao mundo/natureza o ser humano precisou lutar com ferramentas produzidas por ele, pois, em comparação com os demais animais, somos seres frágeis.

(...)
Qual é, porém, a "ferramenta" para enfrentarmos a realidade? A tentação inicial seria dizer: a racionalidade. No entanto, evidentemente, não basta pensar para que as coisas aconteçam; é preciso agir.
Nossa relação de interferência no mundo se dá por intermédio da ação; entretanto, não é uma ação qualquer o que nos distingue, pois todos os animais têm ação. Nossa ação, porque altera o mundo, é uma ação transformadora, modificadora, que vai além do que existia; todavia, alguns outros animais também têm ação transformadora.
O que vai nos diferenciar, de fato, é que só o animal humano é capaz de ação transformadora consciente, ou seja, é capaz de agir intencionalmente (e não apenas instintivamente ou por reflexo condicionado) em busca de uma mudança no ambiente que o favoreça.
Essa ação transformadora consciente é exclusiva do ser humano e a chamamos trabalho ou práxis; é consequência de um agir intencional que tem por finalidade a alteração da realidade de modo à moldá-la às nossas carências e inventar o ambiente humano.
O trabalho é, assim, o instrumento de intervenção do humano sobre o mundo e de sua própria apropriação (ação de tornar próprio) por nós.
Se o trabalho é o instrumento, qual é o nome do efeito de sua realização? Nós o denominamos cultura (conjunto dos resultados da ação do humano sobre o mundo por intermédio do trabalho).
Veja-se que, por ser a cultura um produto derivado de uma capacidade inerente a qualquer humano e por todos nós realizada, é um absurdo supor que alguém não tenha cultura; tal concepção, uma discriminação ideológica, interpreta a noção de cultura apenas no seu aspecto intelectual mais refinado e não leva em conta a multiplicidade da produção humana coletivamente elaborada.
Nós humanos somos, igualmente, um produto cultural; não há humano fora da Cultura, pois ela é nosso ambiente e nela somos socioalmente formados (com valores, crenças, regras, objetos, conhecimentos etc) e historicamente determinados (com as condições e concepções da época da qual vivemos). Em suma, o Homem não nasce humano, e sim, torna-se humano na vida social e histórica no interior da Cultura.
(...)
Da relação Humano/Mundo por meio do trabalho, resultam os produtos culturais; esses produtos, por nós criados a partir de nossa intervenção na realidade e dela em nós, são de duas ordens: as ideias e as coisas.
Movidos pela necessidade como ponto de partida, a Cultura está recheada das coisas que fazemos em função das ideias que tivemos e das ideias que tivemos em função das coisas que fazemos (...). Em outras palavras, os produtos materiais (as coisas) estão impregnadas de idealidade e os produtos ideais (as ideias) estão entranhadas de materialidade.
Os produtos culturais têm, como característica básica, serem úteis para nós; por isso, também podem ser conheituados como bens.
(...)
Desse ponto de vista, o bem de produção imprescindível para a nossa existência é o Conhecimento, dado que ele, por se constituir em entendimento, averiguação e interpretação sobre a realidade, é o que nos guia como ferramenta central para nela intervir; ao seu lado se coloca a Educação (em suas múltiplas formas), que é o veículo que o transporta para ser produzido e reproduzido.

IN: CORTELLA, Mario Sergio. A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos. 13 ed. São Paulo: Cortez, 2009. (pp.35-39)

segunda-feira, 28 de março de 2011

Políticas Culturais: estratégia de desenvolvimento e empoderamento social

Em 2009 pude conhecer o Programa Mais Cultura - Ponto de Cultura. O EMCANTAR, instituição da qual faço parte desde 2001, iria se inscrever no edital de seleção de 100 Pontos de Cultura de Minas Gerais, via convênio entre Ministério da Cultura e Secretaria de Estado de Cultura.
Naquela ocasião, não tinha ainda dimensão de toda a fundamentação político-ideológica dos Pontos de Cultura. Já sabia que era uma estratégia importante para a descentralização cultural, mas ainda não conhecia de perto toda sua conceituação.

Em 2010, tive o prazer de conhecer pessoalmente Célio Turino - idealizador e empreendedor do programa que daria voz e vez aos pontos - , secretário do Ministério da Cultura na época, responsável pela Secretaria de Cidadania Cultural.
O vi falar no Fórum Mundial de Educação Infanto-Juvenil. Foi encantamento à primeira vista! Com poucas e belas palavras, ele falou sobre os Pontos de Cultura na abertura do evento.
Na parte da tarde haveria uma sala só para discussão do assunto.
Isso já me chamou a atenção. Um espaço para discussão sobre cultura em um fórum mundial de educação. Estamos avançando!
E, é claro, fui ouvir "mais de perto" o Célio falar. Lá ele explicou o que eram os Pontos de Cultura e algumas de suas frases me marcaram definitivamente.
Ele disse coisas que todos os que trabalham com projetos culturais em escolas, comunidades etc. já sabem intuitivamente, mas têm dificuldades de expressar (o que ele faz mto bem). Duas dessas marcantes foram:
- Educação e Cultura são bem-comum, assim como a água e o ar.
- Educação e Cultura são vetores imprescindíveis para o desenvolvimento social. Educação sem cultura se tecnifica. Cultura sem educação não se recria.
Pronto! Renovei minhas certezas em relação ao trabalho que eu e meus companheiros temos empreendidos no triângulo mineiro há 15 anos.
(Vale a pena destacar que nessa ocasião conheci também Aldo, companheiro de Célio na empreitada dos Pontos, senhor simpático, atencioso e cheio de coisas para nos ensinar...)

Agora em 2011, tive o prazer de estudar a proposta dos Pontos de Cultura. Acabo de ler "Ponto de Cultura - O Brasil de baixo para cima", da autoria de Célio Turino. E resolvi escrever no Partilha sobre a experiência que tive com essa leitura e a experiência do EMCANTAR (um ponto dessa rede), pois isso foi proposto pelo próprio autor, que continuassemos a escrever essa história.

A cada página que lia, um misto de emoção, esperança e reforço de minhas crenças rodeavam minha cabeça! A proposta empreendida por Célio Turino por meio do ministério é revolucionária e poética ao mesmo tempo. É dar à cultura o centro do pensamento político do país, lugar que merece ocupar, pois, é na vivência e na potência dela que se constrói uma nação!

Cultura como processo. Cultura como empoderamento. Cultura como formação. Cultura como sinônimo de cidadania. Cultura como Vida.

A proposta político-ideológica dos Pontos de Cultura parte do pressuposto que o Brasil precisa se (re)descobrir para se desenvolver. E é ouvindo os de baixos, aprendendo com sua generosidade, persistência, criatividade e coletividade, que vamos realmente construir um país para todos, em que os "filhos desse solo, és mãe gentil, pátria amada, Brasil" sejam plenos em sua terra.

O EMCANTAR foi reconhecido como Ponto de Cultura, via convênio com Secretaria de Estado de Cultura de Minas e Ministério da Cultura em 2010. Uma forma de potencializar suas ações culturais, pelas quais busca contribuir para a formação integral e desenvolvimento pessoal e social das pessoas que compartilham conosco um pouco do brincar de arte e, assim, poder "ser mais"!

A ação do EMCANTAR reconhecida como Ponto de Cultura é o processo de formação cultural pautado na experiência artística com alunos e educadores de escolas públicas. Desde 2002 desenvolvemos projetos em que a proposta é ampliar o repertório cultural e a leitura de mundo, bem como desenvolver as capacidades de expressão e criação dos participantes. Falando de outra forma... uma busca pelo encantamento pela vida e empoderamento, pelas veias da arte, dimensão constituidora do humano.
E ainda, de outra forma... brincar de arte, de conviver, de conhecer, de descobrir e de criar e, assim, dar voz e vez a crianças e educadores para que, com a literatura, a música, a brincadeira e as cênicas possam inventar histórias e escrever suas próprias Histórias.

Vou parando por aqui. E sugiro a todos que leiam o livro, assim como conheçam iniciativas de pontos espalhados pelo Brasil, pois acredito que dessa forma possamos ser humanos mais completos, que valorizam, vivenciam e potencializam aquilo que é nossa principal características: ser produtores de cultura!

E que outros brasileiros, cidadãos, espelhem-se em iniciativas como as de Célio, para que possamos construir uma nação justa, bela e humana.

Referências:

TURINO, Célio. Ponto de Cultura: o Brasil de baixo para cima. São Paulo: Anita Garibaldi, 2009.

www.emcantar.org

terça-feira, 22 de março de 2011

HORA DO PLANETA. Vamos dar pelo menos uma hora a ele....

1 bilhão de pessoas devem ficar às escuras*

No próximo dia 26 de março, pessoas do mundo inteiro vão ficar às escuras em protesto contra o aquecimento global e as mudanças climáticas durante a Hora do Planeta, ação promovida pela Rede WWF (Fundo Mundial pela Natureza, sigla em Inglês).

O ato simbólico conta com a participação de governos, empresas e voluntários de mais de 117 países. Casas, escritórios, empresas e monumentos famosos como o Cristo Redentor, a torre Eiffel e as pirâmides do Egito apagarão suas luzes das 20h30 às 21h30, na hora local de cada país.

Em sua quinta edição, a organização estima que mais de 1 bilhão de pessoas participem da manifestação em todo o mundo.

O movimento nasceu em Sydney em 2007, quando 2,2 milhões de pessoas permaneceram por 60 minutos no escuro para sensibilizar a opinião pública sobre o consumo excessivo de eletricidade e a poluição de dióxido de carbono. No ano seguinte, ganhou dimensão internacional.

O Brasil participou pela primeira vem em 2009. No ano passado, 98 cidades e 20 estados, além de empresas como a Telefônica, o Banco do Brasil e o Grupo Pão de Açúcar aderiram à iniciativa.

A novidade deste ano é a criação da plataforma "60+", que pretende envolver pessoas em iniciativas que ocorrem em várias partes do mundo, fortalecendo as ações coletivas no combate ao aquecimento global em longo prazo.

A ação no Brasi terá como foco a reciclagem. Segundo a WWF, a ideia é esclarecer e influenciar os brasileiros sobre a importância da separação e reciclagem de resíduos sólidos, com envolvimento de governos, empresas e cidadãos. A plataforma está disponível em português no site www.earthhour.org/beyondthehour .

*Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/887418-1-bilhao-de-pessoas-devem-ficar-as-escuras.shtml

segunda-feira, 14 de março de 2011

Uma simples e singela homenagem

Vou utilizar o Partilha para divulgar e também aproveitar para prestar a minha homenagem ao Professor Antônio Carlos Gomes da Costa.
Abaixo a homenagem feita pela OPA - Organização para Proteção Ambiental a esse grande homem.



Tive o prazer de conhecer pessoalmente o professor em 2007.
Participei do curso Formação de Líderes para o Desenvolvimento Sustentável, organizado e ministrado por ele.
Foram cerca de 40 jovens entre 15 e 29 anos que puderam ter o privilégio de conviver e aprender com esse grande homem, e que passaram a pertencer sua "decendência pedagógia", como ele próprio dizia.

O curso, assim como todos os textos do professor, foram enriquecedores em minha trajetória de educadora e agente social.
Agradeço essa oportunidade e deixo meus sentimentos por essa partida, pois, com certeza, perdemos - todos os cidadãos brasileiros - muito.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Para reflexão! Leis ambientais são iguais para o campo e para a cidade?

A carta a seguir - tão somente adaptada por Barbasa Melo - foi escrita por Luciano Pizzatto que é engenheiro florestal, especialista em direito socioambiental e empresário, diretor de Parque Nacionais e Reservas do IBDF-IBAMA 88-89, detentor do primeiro Prêmio Nacional de Ecologia.*

Carta do Zé agricultor para Luis da cidade.



Prezado Luis, quanto tempo.


Eu sou o Zé, teu colega de ginásio noturno, que chegava atrasado, porque o transporte escolar do sítio sempre atrasava, lembra né? O Zé do sapato sujo? Tinha professor e colega que nunca entenderam que eu tinha de andar a pé mais de meia légua para pegar o caminhão por isso o sapato sujava.

Se não lembrou ainda eu te ajudo. Lembra do Zé Cochilo... hehehe, era eu. Quando eu descia do caminhão de volta pra casa, já era onze e meia da noite, e com a caminhada até em casa, quando eu ia dormi já era mais de meia-noite. De madrugada o pai precisava de ajuda pra tirar leite das vacas. Por isso eu só vivia com sono. Do Zé Cochilo você lembra né Luis?

Pois é. Estou pensando em mudar para viver ai na cidade que nem vocês. Não que seja ruim o sítio, aqui é bom. Muito mato, passarinho, ar puro... Só que acho que estou estragando muito a tua vida e a de teus amigos ai da cidade. To vendo todo mundo falar que nós da agricultura familiar estamos destruindo o meio ambiente.

Veja só. O sítio de pai, que agora é meu (não te contei, ele morreu e tive que parar de estudar) fica só a uma hora de distância da cidade. Todos os matutos daqui já têm luz em casa, mas eu continuo sem ter porque não se pode fincar os postes por dentro uma tal de APPA que criaram aqui na vizinhança.

Minha água é de um poço que meu avô cavou há muitos anos, uma maravilha, mas um homem do governo veio aqui e falou que tenho que fazer uma outorga da água e pagar uma taxa de uso, porque a água vai se acabar. Se ele falou deve ser verdade, né Luis?

Pra ajudar com as vacas de leite (o pai se foi, né .) contratei Juca, filho de um vizinho muito pobre aqui do lado. Carteira assinada, salário mínimo, tudo direitinho como o contador mandou. Ele morava aqui com nós num quarto dos fundos de casa. Comia com a gente, que nem da família. Mas vieram umas pessoas aqui, do sindicato e da Delegacia do Trabalho, elas falaram que se o Juca fosse tirar leite das vacas às 5 horas tinha que receber hora extra noturna, e que não podia trabalhar nem sábado nem domingo, mas as vacas daqui não sabem os dias da semana ai não param de fazer leite. Ô, bichos aí da cidade sabem se guiar pelo calendário?

Essas pessoas ainda foram ver o quarto de Juca, e disseram que o beliche tava 2 cm menor do que devia. Nossa! Eu não sei como encumpridar uma cama, só comprando outra né Luis? O candeeiro eles disseram que não podia acender no quarto, que tem que ser luz elétrica, que eu tenho que ter um gerador pra ter luz boa no quarto do Juca.

Disseram ainda que a comida que a gente fazia e comia juntos tinha que fazer parte do salário dele. Bom Luis, tive que pedir ao Juca pra voltar pra casa, desempregado, mas muito bem protegido pelos sindicatos, pelo fiscais e pelas leis. Mas eu acho que não deu muito certo. Semana passada me disseram que ele foi preso na cidade porque botou um chocolate no bolso no supermercado. Levaram ele pra delegacia, bateram nele e não apareceu nem sindicato nem fiscal do trabalho para acudi-lo.

Depois que o Juca saiu, eu e Marina (lembra dela, né? casei) tiramos o leite às 5 e meia, ai eu levo o leite de carroça até a beira da estrada onde o carro da cooperativa pega todo dia, isso se não chover. Se chover, perco o leite e dou aos porcos, ou melhor, eu dava, hoje eu jogo fora.

Os porcos eu não tenho mais, pois veio outro homem e disse que a distância do chiqueiro para o riacho não podia ser só 20 metros. Disse que eu tinha que derrubar tudo e só fazer chiqueiro depois dos 30 metros de distância do rio, e ainda tinha que fazer umas coisas pra proteger o rio, um tal de digestor. Achei que ele tava certo e disse que ia fazer, mas só que eu sozinho ia demorar uns trinta dia pra fazer, mesmo assim ele ainda me multou, e pra poder pagar eu tive que vender os porcos as madeiras e as telhas do chiqueiro, fiquei só com as vacas. O promotor disse que desta vez, por esse crime, ele não ai mandar me prender, mas me obrigou a dar 6 cestas básicas pro orfanato da cidade. Ô Luis, ai quando vocês sujam o rio também pagam multa grande né?

Agora pela água do meu poço eu até posso pagar, mas tô preocupado com a água do rio. Aqui agora o rio todo deve ser como o rio da capital, todo protegido, com mata ciliar dos dois lados. As vacas agora não podem chegar no rio pra não sujar, nem fazer erosão. Tudo vai ficar limpinho como os rios ai da cidade. A pocilga já acabou, as vacas não podem chegar perto. Só que alguma coisa tá errada, quando vou na capital nem vejo mata ciliar, nem rio limpo. Só vejo água fedida e lixo boiando pra todo lado.

Mas não é o povo da cidade que suja o rio, né Luis? Quem será? Aqui no mato agora quem sujar tem multa grande, e dá até prisão. Cortar árvore então, Nossa Senhora!. Tinha uma árvore grande ao lado de casa que murchou e tava morrendo, então resolvi derrubá-la para aproveitar a madeira antes dela cair por cima da casa.

Fui no escritório daqui pedir autorização, como não tinha ninguém, fui no Ibama da capital, preenchi uns papéis e voltei para esperar o fiscal vim fazer um laudo, para ver se depois podia autorizar. Passaram 8 meses e ninguém apareceu pra fazer o tal laudo ai eu vi que o pau ia cair em cima da casa e derrubei. Pronto! No outro dia chegou o fiscal e me multou. Já recebi uma intimação do Promotor porque virei criminoso reincidente. Primeiro foi os porcos, e agora foi o pau. Acho que desta vez vou ficar preso.

Tô preocupado Luis, pois no rádio deu que a nova lei vai dá multa de 500 a 20 mil reais por hectare e por dia. Calculei que se eu for multado eu perco o sítio numa semana. Então é melhor vender, e ir morar onde todo mundo cuida da ecologia. Vou para a cidade, ai tem luz, carro, comida, rio limpo. Olha, não quero fazer nada errado, só falei dessas coisas porque tenho certeza que a lei é pra todos.

Eu vou morar ai com vocês, Luis. Mais fique tranqüilo, vou usar o dinheiro da venda do sítio primeiro pra comprar essa tal de geladeira. Aqui no sitio eu tenho que pegar tudo na roça. Primeiro a gente planta, cultiva, limpa e só depois colhe pra levar pra casa. Ai é bom que vocês e só abrir a geladeira que tem tudo. Nem dá trabalho, nem planta, nem cuida de galinha, nem porco, nem vaca é só abri a geladeira que a comida tá lá, prontinha, fresquinha, sem precisá de nós, os criminosos aqui da roça.

Até mais Luis.

Ah, desculpe Luis, não pude mandar a carta com papel reciclado pois não existe por aqui, mas me aguarde até eu vender o sítio.

(Todos os fatos e situações de multas e exigências são baseados em dados verdadeiros. A sátira não visa atenuar responsabilidades, mas alertar o quanto o tratamento ambiental é desigual e discricionário entre o meio rural e o meio urbano.)

* Texto veiculado por email.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Outra importante pausa. Cultura: vetor de desenvolvimento?

5 de fevereiro de 2011
MinC: a parte que nos cabe desse latifúndio.*

No governo Lula, o ministério da cultura (MinC) ocupou uma posição central. Com os ministros Gilberto Gil (2003-08) e Juca Ferreira (2009-10), contribuiu incisivamente para o aprofundamento da democracia do país. Com políticas públicas inovadoras, não governou apenas para uns, mas para todos os cidadãos, ampliando o escopo da indústria e da "classe artística" para o vasto espectro de trabalhadores culturais do Brasil, em todas as regiões, até os rincões mais afastados. Nos últimos oito anos, a cultura deixou de ser assunto secundário, acessório, "perfurmaria", para se instalar no cerne de um projeto global de democracia, que produz renda no processo mesmo em que a dissemina.

O coração programático do MinC foram os Pontos de Cultura. Hoje, já são cerca de 4.000 pontos em mais de 1.100 municípios. Cada Ponto recebe R$ 180 mil, em parcelas semestrais, para remunerar as pessoas, comprar equipamento, divulgar a arte e a cultura.

O investimento gira na ordem das centenas de milhões de reais e contempla diversos âmbitos: audiovisual, música, literatura, grafite, circo, teatro, dança etc. Num processo dinâmico, a partir dos Pontos, coordenam-se as demais ações do Programa Nacional de Cultura (Cultura Viva), tais como a Cultura Digital (redes na internet, software livre, multimídia etc) e vários editais públicos de fomento.

Pela primeira vez, o foco do MinC passou a ser quem genuinamente precisa de incentivo. Os Pontos atendem principalmente à população de baixa renda, nas periferias das metrópoles e no interior pobre. Assiste minorias indígenas e quilombolas, o artista e o produtor iniciantes, os midialivristas e jornalistas-internautas. Alcança também os pesquisadores e formuladores político-culturais, nas universidades e institutos. Num cenário cultural dominado pela grande indústria de entretenimento, os Pontos qualificam socialmente o investimento cultural.

Tome-se o exemplo do cinema. As majors, grandes produtoras e distribuidoras norte-americanas, abocanham quase 90% dos lucros, graças a duas dezenas de blockbusters anuais. Dos outros 10%, a Globo Filmes --- que também é grande indústria --- engole a maior fatia, com suas produções de linguagem televisiva.

Enquanto isso, segundo o relatório Cultura em Números (MinC, 2010), somente 8% dos municípios brasileiros têm salas de cinema, e risíveis 13% dos cidadãos costumam freqüentá-las. Produções pequenas e novas, fora do cinemão (americano ou "global"), dificilmente ultrapassam um ou dois mil espectadores. Isso quando tem a rara felicidade de chegar ao circuito comercial (em poucas salas). Além disso, as grandes linhas de crédito não se abrem à cauda longa de pequenos produtores, ficando justamente com quem já dispõe de bons dividendos.

Os Pontos de Cultura deslizam dessa lógica verticalizada e desigual. Abrem a arte e cultura para um estamento até então segregado dos meios de produção e difusão. Se a indústria cultural tem dono e divide os lucros entre acionistas, empresários e (quando muito) um punhado de medalhões, os Pontos remuneram direta ou indiretamente 8,4 milhões de pessoas (dados do IPEA).

A vida cultural não se faz somente com grandes produtoras, empresários empreendedores e artistas consolidados. Este grupo não responde sequer por 1% do universo de trabalhadores da cultura. Refiro-me aos inúmeros técnicos, fotógrafos, maquiadores, roteiristas, blogueiros, designers, músicos, dançarinos, assistentes, montadores, sonoplastas, atores e tantos outros que (sobre)vivem de bicos e contratos temporários. Não recebem um tostão em direitos autorais e são obrigados a se submeter a um regime exploratório e injusto de remuneração, como subempregados das majors. Quantos jovens talentos não abandonam a atividade por falta de renda e condição humilhante?

Esse precariado produtivo só começou a ser efetivamente contemplado no governo Lula, graças principalmente aos Pontos e editais transversais (democráticos) da Cultura Viva.

Além da renda, há outros fatores importantes. Os Pontos abraçam uma organização política não-hierárquica e colaborativa. Funcionam em rede, na base da articulação, da remixagem, do mash-up. O jovem produtor não tem que se submeter a empregos ou subempregos. Ele é livre, autônomo, constituinte de sua produtividade.

Mas o sistema não é anárquico. Para coordenar (e não comandar) a rede, foram implantados mais de 100 Pontões. Atuam como rótulas do sistema e são granjeados com infraestrutura mais robusta e repasse mais generoso (R$ 500 mil cada). Os nós equipotenciais reúnem-se em fóruns, teias (encontros) e numa Comissão Nacional. Vibram em conjunto, difundindo a produção horizontalmente e retroalimentando a cadeia criativa.

Na sociedade pós-industrial, a circulação por si só agrega valor aos conteúdos. Quanto mais "viral" a produção, mais interage, captura a atenção e constitui públicos. Tudo isso valoriza o processo mesmo da comunicação. Com efeito, a cultura livre se dá na partilha de mundos, onde cada um pode afirmar seus sentidos, desejos, modos de olhar e sentir. E não no esquema monológico da indústria nacional. A esquerda hoje é pelo compartilhamento, enquanto a direita quer tirar da circulação, botar preço, vedar, criminalizar.

Os Pontos e as políticas associadas não consistem, portanto, tão somente em modo de remunerar a "massa" de precários da cultura, como técnica de governo. Mas sobretudo empoderar o cidadão e concitar um ciclo microeconômico com valor democrático. Reconhecer que todos podemos gerar e divulgar conteúdo, que podemos participar ativamente da democracia como sujeitos, como elos da vida cultural, como mídia.

Está em jogo uma concepção de cultura muito além do entretenimento ou do negócio, como na visão da indústria --- nacional ou estrangeira. No século 21, cultura e conhecimento situam-se no cerne da produção de valor. E implicam a cidadania: o produtor cultural é imediatamente sujeito político.

Por tudo isso, o sociólogo Giuseppe Cocco, da UFRJ, em artigo a jornal paulista, pôde concluir que "o Bolsa Família é a maior política cultural do governo Lula, e os Pontos de Cultura são a melhor distribuição de renda deste governo."

Quer dizer, assim como o programa Bolsa Família excita microeconomicamente as regiões contempladas, e gera excedentes para o acesso a bens culturais; os Pontos remuneram os trabalhadores e potencializam a produção de valores, sentidos, afetos... de riqueza --- o que, no pós-industrial, tem automaticamente efeito econômico. Daí, o intelectual ítalo-brasileiro defende a integração do Bolsa Família aos Pontos de Cultura, pois juntos acionam todo um círculo virtuoso de renda, cidadania e liberdade.

Isto posto, preocupam as primeiras movimentações da ministra Ana de Hollanda e de sua equipe. Decerto, uma tentativa de desmantelar as realizações do governo Lula, com Gil e Juca, seria a mais deslavada traição do voto. A eleição de Dilma significou a vitória do projeto de continuação e aprofundamento do governo anterior. Ao que parece, conquanto não haja sinais de ruptura frontal, o "acerto de contas" com a ousadia lulista pode ocorrer de maneira mais discreta e traiçoeira.

Duas expressões estão em voga na boca do ministério: "economia criativa" e "indústrias criativas". Já divulgada na grande imprensa, a idéia da economia criativa se institucionaliza com uma nova secretaria. A bem da verdade, parece uma iniciativa oportuna, que reconhece o caráter imaterial da new economy, da dita "economia da cultura e do conhecimento".

Assim, em vez de preocupar-se apenas com a venda de CD, livros e filmes, a economia criativa engloba outras atividades: a moda, o marketing, a gastronomia, o videogame, a cosmética etc. Explode o esquema "duro" de arte-de-artista, como alfa e ômega da cultura, e abarca a constituição de mundos: afetos, valores, modos de sentir.

Até aí tudo bem. Preocupa o que pode vir junto no pacote da economia criativa. Qual o sentido que será conferido a esse discurso aparentemente interessante. Para isso, valem analisar declarações da nova equipe e estudos-chave desse programa (como o e-book Economia Criativa como Estratégia de Desenvolvimento).

O primeiro problema pode surgir com o discurso técnico de otimização e eficiência. Essa linha argumentativa pode ser manejada (e já está sendo), para subtilmente atribuir aos Pontos de Cultura a pecha de desorganizado, precário, "ingênuo". Isso significaria a retração de editais e redes colaborativas, em proveito do mais "organizado" esquemão, o empreendedorismo "sustentável" da indústria cultural e dos players dominantes do mercado. O velho conto do vigário: por razões tecnocráticas, muda-se uma política de esquerda.

O segundo problema surge na forma como as indústrias criativas serão viabilizadas. Porque "sustentabilidade" nem sempre significa democracia. O social (os Pontos?) não pode matar a cultura, porque a cultura é social em primeiro lugar (diverso o pensamento de uma das secretárias do MinC). Por exemplo, a Globo Filmes está perfeitamente sustentável, mas mantém a lógica concentrada, hierárquica, vertical, monotônica (televisiva). O MinC, um órgão público, promotor da justiça social e da democracia cultural, não pode servir para apascentar ainda mais as poucas e grandes empresas do setor. Com muito menos razão, num governo de esquerda, com seu devir anti-histórico. Se, de alguma forma, a economia criativa privilegiar o modelo velho, onde o cidadão é só consumidor e o grosso da renda vai para as majors, se torna golpe camuflado de desenvolvimento.

O terceiro problema reside num nacionalismo mal-disfarçado e totalmente anacrônico (do tipo que a Microsoft ama). Quando se fala em indústrias criativas, há o risco disso traduzir indústria criativa... nacional, numa reedição obsoleta de nacional-desenvolvimentismo (progresso e soberania prioridades, democracia e justiça efeitos). Isto significa, mais uma vez, a idéia de cultura como parque formal de geração de empregos brasileiros e valores brasileiros. Volta-se à passeata contra a guitarra elétrica de 1967.

O caso não é se proteger da cultura americana ou européia. É pegar tudo, não pagar nada, usar à vontade e remixar. Eis a antropofagia. A história da agitação cultural brasileira do século 20, --- desde os modernistas nas décadas de 1920 e 1930, e dos tropicalistas em 1960 (tendo Gilberto Gil como expoente), --- foi a luta simultânea contra nacionalistas-integralistas e colonizados-modernizantes. Foi sair pela tangente desse falso problema.

Porque o problema não está em ser estrangeiro, mas em ser indústria, no trabalho explorado e na desigualdade social. Paramount ou Globo Filmes são igualmente expropriantes, antidemocráticas e monopolistas. Enquanto um filme independente de Seattle ou um CD gravado pelos índios sioux da América do Norte podem vibrar produtivamente com as redes daqui.

Em suma, os Pontos de Cultura foram tão transformadores, --- e tão sintonizados na verve democrática no governo Lula, --- por começar uma ruptura com a divisão técnica e social do trabalho cultural, com a concentração de renda em empresas monopolistas, com o viés mercadológico e privatista do investimento público, descolado das demandas sociais e políticas. Se a economia criativa e o novo MinC que a propugna vierem para sabotar as mudanças, será uma guinada menos do que conservadora. Será ardilosamente reacionária.

Portanto, ao movimento compete articular-se para que não aconteça. Lutar desde já pelos direitos constituídos em conjunto, ao longo de oito vibrantes anos, com Lula, Gil e Juca. Cabe-nos, cidadãos mobilizados política e culturalmente, recusar a parte que nos cabe desse latifúndio.

*Texto postado no blog "Quadrado dos loucos", de Bruno Cava.
Fonte: http://quadradodosloucos.blogspot.com/2011/02/minc-parte-que-nos-cabe-desse.html